terça-feira, 22 de setembro de 2009

Um anônimo


Milhões de rostos sem nome circulam ao nosso redor todos os dias, incontáveis, perdidos naquilo que chamamos multidão. Toda essa impessoalidade já nos é habitual, mas particularmente hoje algo me chamou atenção, não sei explicar o porquê do hoje, do agora, simplesmente ocorreu, algo que provavelmente me ocorreria qualquer dia desses, vagando pela embrutecida metrópole de pedra.
Um dia nublado, alguns amigos, um passeio atípico. Perambulamos sem rumo, sem hora, sem nome, nos entregamos ao anonimato da madrugada, mergulhamos na negligência de se ter como teto o céu, grandioso e cruel, que no contexto atual abriga vidas abandonadas, escolhas erradas, passos em falso.
Perdido como nós estava dona Niery, mulher de meia idade, cabelos grisalhos, sorridente, poucos dentes na boca, alegre como ela só, parecia nem notar a noite gélida, mas ao contrário de nós ela não tinha escolha. Paramos para ouvir sua história, dividimos cigarros, tempo, ombro, algo que normalmente dona Niery não tinha. Não de bom grado, não sem olhares de reprovação, não de alguém que não desconfiasse de sua sanidade, não de alguém que não temesse sua loucura. Paramos. Não nos importávamos com a pouca frequência de banho dela, ela não ligava para o saldo da nossa conta bancária. Éramos iguais, mas nem tanto, no viver ela era muito mais rica que nós.
Nos sentamos, ela começou contanto da sua adolescência sofrida, inusitada. Comentou os seus vícios e sua confiança demasiada na vida. Dez anos de alcoolismo, drogas, prostituição, dez anos que a fizeram perder seus filhos, dez anos em que esteve distante de si mesma. Se encontrou.
Nos contou da sua recuperação das drogas, da troca dos prostíbulos por empregos humildes. Nos contou orgulhosa da filha que mora em Los Angeles, dos amores de sua vida, dos motivos que a levaram às ruas e estes se resumem à apenas uma palavra, para ser mais específica um nome: Rafael.
Rafael, é o filho mais novo de dona Niery. Um moço de sorriso largo, inocente. Rafael sofre de esquizofrenia desde os 8 anos de idade, hoje tem pouco mais de 20. Seu quadro é irreversível e pouco tratável, nenhuma clínica conseguiu o conter, garoto rápido e inteligente, fugir nunca foi um problema para ele. Durante o período de internações, algo foi constatado: cada vez Rafael fugia para mais longe, foi encontrado em Minas, Bahia, em Pernambuco. Dona Niery passou muitas noites em claro, foram muitas visitas à hospitais, necrotérios, tantas vezes chorou por achar que tinha perdido seu filho. Rafael fez da rua sua casa, escolheu a avenida paulista para ser seu reino. Lá ele se sentia seguro, depois de tantos anos, carros de bombeiros, internações, ambulâncias e camburões, dona Niery resolveu que o respeitaria e prometeu a si mesma que jamais o abandonaria. E agora é assim: Dona Niery passa os dias e a noites vivendo na praça que ele escolheu como lar, lhe trazendo comida, remédios, calçados e vestimentas que compra com sua aposentadoria. Rafael não sabe sequer quem dona Niery é, desconfia que ela seja uma sobrinha distante, ela não se importa, permanece ali, com tamanho zelo enfrentando as ruas para ficar ao lado dele.
Questionamos se essa seria realmente a melhor saída, ela nos olhou e com seu sorriso largo e de poucos dentes nos respondeu: "Se eu o deixasse numa clínica, ele não seria mais meu filho, seria um ser dopado e mau tratado. Aqui ele é feliz. Ele sendo feliz eu também sou." Acenamos com a cabeça, quase reverenciando seu amor incondicional, um sorriso escapou de lado, já era dia, precisávamos ir.
Lembro de ter abraçado forte aquela mulher de poucos dentes e lhe desejado sorte, ela agradeceu o tempo emprestado e pediu que nos cuidássemos e que cuidássemos de Rafael se o encontrássemos por aí. Em seguida saiu correndo em disparada no meio da avenida paulista para entregar lanches à Rafael que caminhava tranquilamente do outro lado da via. Se perdeu anônima no meio da multidão, em meio aos milhões de rostos sem nome que circulam ao nosso redor todos os dias. Uma lição de vida sem endereço fixo, um rosto sem identidade nos ensinando sobre humanidade, nos socando o ego por algum entendimento. E eu entendi.

Você sabe o que é amor?
Eu definitivamente não.

Um comentário:

Kitsune disse...

Nessas horas eu percebo que teho tudo e não tenho nada.