quarta-feira, 28 de abril de 2010

Beatriz


Conheci Beatriz ainda jovem, uma semana depois que o mundo acabou.
Caos estabelecido. Conveniência, quartos separados, convivência por aparência. Aparentemente infeliz.
E então ela apareceu. Flor entre os destroços, forte: pétalas à prova de fogo. Beatriz tinha pouco menos de 20 anos e os seus olhos eram talvez tão velhos quanto os meus. Menina. Mulher. Meu amor.
Eu, a voz rouca, parada, remota, já não tão jovem assim. Mulher feita, com aliança, carnê de prestações e toda a frustração de uma vida que não chegou a acontecer.
- Fogo, por favor. Aproximei a chama de seu rosto e vi em seus olhos os meus olhos refletidos. Beatriz tinha alguma coisa de santa, alguma coisa de puta, Beatriz tinha alguma coisa de mim. Ela me tinha. E ela sabia.
- Vem comigo. A música alta foi ficando cada vez mais distante, as vozes, o cheiro de urina e bebida impregnado no chão monocromático. Beatriz me levou pela mão. Não consegui olhá-la nos olhos, ela sorriu, andamos dois quarteirões até que o luminoso nos apontou a entrada. Não fiz qualquer pergunta, eu estava segura, eu estava com Beatriz. Sussurrei qualquer coisa como essa é a minha primeira vez, eu não deveria estar aqui. Beatriz sorriu e me confortou dizendo que também não tinha noção do que estava fazendo que talvez tivesse enlouquecido de vez como sua mãe sempre lhe dizia. Não importava. Eu a tinha achado. Nada mais importava. Não hoje. Não agora.
Esqueci seu sexo, seu nome, o fim do mundo.
Beatriz me amou como ninguém nunca ousara amar.
"Você comigo onde quer que eu vá."
Dormimos. Ninho familiar.
Sonhei com um colar de flores, borboletas, Beatriz sorria, eu suspirava. Beatriz. Finalmente.
Acordei assustada, coração acelerado, Beatriz não estava, tudo estava diferente, a música alta perturbava os meus sentidos, eu estava num sofá de couro preto, infecto, nojento. Corri para encontrar Beatriz. Em vão.
Foi um sonho.
Um sonho real demais.
Voltei para casa, para minha vida miserável, um lar desfeito, uma mentira. Ele dormia no sofá, no chão uma garrafa de conhaque vazia. Patético, como sempre. Caminhei lentamente para o banheiro. Me despi em frente ao espelho. As lágrimas escorriam enquanto eu me olhava fixamente.
De repente percebi, acima do meu seio, escrito de batom vermelho: Beatriz.
Nas costas as marcas dos lábios, das unhas, do amor dela.
Uma noite.
O amor dos meus sonhos. O amor da minha vida.
"Você comigo onde quer que eu vá."

E eu te levarei.





Ouvindo: Someone saved my life tonight - Elton John

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